Memórias, o 8 1/2 de Woody Allen

Dizem, aliás, de Woody Allen, que ele é assim: inspira-se nas grandes obras que admira para criar seus filmes “absolutamente autorais”. Segundo essa mesma lógica, Desconstruindo Harry, de 1997, não passaria do seu Morangos Silvestres que, por mais Bergman, não deixa de ser uma comédia.

Em Memórias, WA parte de um personagem auto-referende, Sandy Bates, um cultuado cineasta que, do interior de seu Rolls Royce, se recusa a seguir dirigindo comédias, gênero por ele considerado indigno num mundo povoado de dor e sofrimento. A partir daí, WA tece uma grande declaração de amor ao gênero que seu protagonista/alter ego pretende desprezar. Por isso o meu impulso de examinar alguns dos mecanismos fundamentais da comédia que WA encena, e Sandy Bates, a contragosto, encarna.

A comédia é o gênero que trata das imperfeições humanas. E que alegria constatar que se Woody Allen pretende ter de si mesmo expectativa mais nobre (e, logo, mais trágica), se resigna como ninguém a nos matar de rir.

– Comédia é hostilidade. É raiva… O que um cômico diz quando suas piadas dão certo? Que ele matou o público de rir; que acabou com eles…

– O que você está dizendo? Que gente como eu, o gordo ou o magro somos furiosos?

É que atrás das aparências de toda gague ou situação cômica o que há é um tremendo conflito ligado à natureza humana, o que coloca a comédia muito longe da alegria ou do êxtase, ambos desprovidos de conflito e sem repercussão.

– Eles tentam reproduzir seu próprio sofrimento e vender como arte…

– Mas de que esse cara pode sofrer? Ele não sabe que tem o maior dom, o dom de fazer rir?

Uma relação artificial com o sofrimento. Tudo o que é passível de provocar identificação no espectador não é próprio da comédia. Podemos, sim, rir do sangue e das lágrimas, se forem excessivas ou exageradas. Sendo assim, Sandy pode levar um tiro e chegar morto ao hospital, desde que reapareça para receber um prêmio póstumo e fazer um discurso diante de uma platéia de fãs. E de toda maneira, a comédia sempre tem algo de artificial, exagerando tudo – as motivações, as reações, os acontecimentos – até o paroxismo ou até a obsessão. Seria esse o caso das melancolias e depressões de tantos personagens criados e interpretados por WA que, como Molière, Keaton ou de Funès – autores que, como ele, vestiram seus personagens – se oferecem em sacrifício pela sátira, recusando o papel do herói ou do galã; e sempre encarnando as vítimas de suas próprias piadas, e das tais limitações humanas.

E não por acaso. WA não possui exatamente o physique du rôle de galã, e deve ter amargado bastante insegurança e miséria emocional na infância e juventude. O que nos leva a mais essas características do cômico puro:

Sua graça é o fruto, amadurecido e adocicado, de um profundo experimento da dor humana.

O senso de humor é ferramenta que permite compreender uma das formas de inteligência, assim como a faculdade do cômico para desenvolver o espírito crítico.

– É verdade que você é preconceituoso face aos intelectuais, por se sentir por eles ameaçado?

-Não, não, eu sempre digo que eles só matam (ou atingem)a eles mesmos…

Segundo Henri Bergson, “o cômico exige, para produzir seu efeito, algo como uma anestesia momentânea do coração, se dirigindo à inteligência pura”, ainda que pelo viés sensorial do riso. Nenhum discurso sério e grave jamais foi capaz de tal proeza.

Mas WA sim, sem, no entanto, fazer da comédia um modo de evitar ou encobrir suas emoções. O que dizer da penúltima cena do filme, oferecida ao público por um WA já “morto” sem morrer, já apaziguado de suas tormentas existenciais, que retorna com um fim sem lixo, sem céu, sem óvnis. Apenas beatitude, iogurte e o sorriso monalisesco de Charlotte Rampling.

-Você acredita no par perfeito?

– Não acho que os relacionamentos se baseiem em compromissos, maturidade ou perfeição. Na verdade, tudo é uma questão de sorte. As pessoas não suportam ouvir isso, porque implica em aceitar que elas não controlam nada.

Memórias não é puramente uma comédia; antes, comédia romântica, em que é o gênero em si que compartilha as odes de amor com a mocinha, Isobel, heroína madura do possível, exatamente o que a comédia é em relação à vida.

Sem conseguir desvendar o sentido de uma, como tanto quer Sandy Bates, o filme aponta para o sentido da outra; e é da boca do psicanalista (vindo de WA, nada mais natural!) que ele é decifrado; pensemos que, para o diagnóstico de Sandy Bates, não há melhor remédio (ou vacina) do que a comédia:

– Eu o tratei. É um paciente complicado, que via a realidade muito claramente, sem nenhum mecanismo de defesa capaz de bloquear a terríveis verdades da existência. No fim, sua incapacidade de empurrar para longe fatos horríveis do estar no mundo tornaram sua vida sem sentido. Como diria um grande produtor de Hollywood: “Muita realidade não é o que as pessoas querem.”

A comédia termina quase sempre mal e tem no fracasso um de seus componentes fundamentais (nesse caso no necrotério, na cadeia ou na sala vazia, uma vez terminada a sessão?) – não necessariamente por terminar tragicamente, mas no sentido de que o protagonista não alcança seu objetivo. E mais: quando termina bem (um beijo molhado, do bom sentimental; e mais os aplausos), isso não passa de aparência. Sandy Bates atinge seu objetivo, mas sentimos que nem por isso ele vai “viver feliz para sempre”. Talvez porque, ao contrário da maioria dos protagonistas das tragédias, ele vai simplesmente continuar vivendo.

– Por que existe tanto sofrimento?

– Pergunta irrespondível.

– Deus existe?

– Pergunta errada.

– Se nada mais resta, por que se dar ao trabalho de fazer filmes?

– Porque nós gostamos dos seus filmes; principalmente os antigos, mais engraçados.

– Mas a condição humana é tão desencorajadora?

– Existem também os bons momentos…

– Eu não deveria parar com as comédias  e fazer algo realmente importante, como tornar-me missionário?

– A verdade? Ser missionário não faz o teu gênero, você não duraria muito. Você é um cômico! Quer fazer um favor para a humanidade: trate de melhorar as suas piadas.

O palhaço é sincero. Incrível a ponte que Memórias, de 1980, soube constituir com o fio condutor da obra de WA, cuja réplica poderemos assistir em breve nas telas do recém lançado Whatever Works (de 2009, quase 30 anos depois!). Poderíamos crê-lo uma quase retomada de conversa, após a interrupção do garçom: a sorte nas relações, as cenas do museu de cera, o tom da comédia acre-doce encabeçada pelo cômico-intelectual deprimido que leva hora e meia para afinal se curvar diante do que ainda possa haver de belo a viver, e a melhor receita para nos tornarmos capazes de percebê-lo.

O palhaço é triste. De todos os seres humanos, o palhaço é quem melhor compreende a natureza da vida. De certa maneira, “triste” toma o sentido de “lúcido”, ou até o de “desencantado”. Qual foi a última vez que vimos um ser humano de carne e osso mudar de idéia e de valores de mundo em seguida a uma argumentação convincente – a ponto de deixar a igreja evangélica da qual é pastor para assumir um homossexualismo enrustido de anos – como é capaz um personagem do último longa de WA? Se eles o fazem é por serem portadores de uma percepção humanista e profundamente otimista de WA para com seus congêneres. Mas, afinal, e apesar das afinidades, esse já é um outro filme.

Por isso, para fechar em looping, deixo a piada que alguém contou (um outro alguém, com certeza) sobre Woody Allen vindo render-se a Ingmar Bergman em seu leito de morte e o indagando sobre sua sabedoria da alma humana e do sentido da vida. O tipo engraçado do Brooklyn pergunta ao nórdico moribundo, ansioso e insistente, exatamente como Sandy Bates faz aos alienígenas:

– Mestre, você que já jogou xadrez com a morte, me ensine: como é morrer?

Bergman, meio hesitando, com aquele jeito de quem pensa enquanto fala, mesmo na hora da morte, solta resignado:

– Morrer é fácil… Fazer comédia é difícil.

E com isso ele ganha a vida…

© Juliana Reis

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