
“> https://
https://www.kickante.com.br/campanhas/documentario-dubio-pro-societate
Um mês para,
“com a pacífica utilização dos espaços públicos a todos acessíveis, como as ruas, praças, timelines, emais e zapps, conquistar, pelo poder das ideias, pela força da persuasão e pela sedução das palavras, corações e mentes, em ordem a promover atos de proselitismo para uma causa que se pretende legítima”
e reunir mais 850 contribuidores aos 150 que já aderiram. E espalhar o debate da descriminalização do aborto por todo lugar.
(eu citando Celso de Mello, ministro do STF)
Aqui faço um corte seco pra falar de Winnicott.
Ou, ao menos, do que eu aprendi com ele.
Segundo o pedo-psicanalista inglês, nascido ainda no século 19, um bebê de apenas alguns meses reinaugura a capacidade da inteligência humana a cada vez que sua mãe entrega pra ele um paninho fedorento ou um bicho de pelúcia, lhe dá um beijinho na testa e… simplesmente desaparece. Vai literalmente embora – dormir, trabalhar, ou sentir outro tipo de prazer que não os da maternidade (atenção: aos maus entendedores, o que escrevi é exatamente o que vc leu).
Nesse momento, condenado pelo desespero mais aterrador que se conheça para a idade, o projeto de pessoa precisa ultrapassar a dependencia visceral e absoluta da mãe e, para sobreviver a sua ausência, não encontra nada melhor para fazer do que representá-la pela fralda encardida ou pelo coelho de pano, impregnados do cheiro familiar e apaziguador.
Conceituar. Uma maçã não precisa existir para q saibamos a maçã: ela existe no desenho, na palavra e até em representações mais complexas e simbólicas, como no odor, na cor, na ideia do pecado (que por si só, já é uma representação da representação). Ao ser capaz de criar o conceito da mãe, o recém nascido se empodera para representá-la, atribuir seu sentido às representações e guardar sempre sua mãe consigo, se tornando destemido e invulnerável…
E assim os homens das cavernas se tornaram mais potentes que o relâmpago e a tempestade, no momento em que pintaram nas paredes a representação desse relâmpago. Por que o que ele representa, ele domina.
Mais ou menos isso resume, do meu jeito, sua teoria do objeto transicional, mais conhecido como doudou, lala ou coelho da mônica: se a mãe não desaparece e o desespero não se instala, o esforço não se faz, o pensamento não se inaugura, a inteligência não é reinvetada. Sem a mãe necessidade, a ideia não nasce. No seu lugar, atrofia emocional, miopia historica, disturbios de crescimento psíquico-social.
Desde os anos 80, ouço o bordão: “o problema do cinema brasileiro é o roteiro!”
Em tanto tempo (40 anos! a vida é um sopro…), se fôssemos gente séria, uma indústria audiovisual profissional com um repertório dramatúrgico maduro, já teríamos nos debruçado sobre a questão, e a resolvido.
Mas não. Preferimos nos virar, cada um como pode (quem nunca???), surfar nas ondas das ocasiões e se deixar atacar lá onde dói mais (e onde inviabiliza): Embrafilme, Ministério da Cultura, Lei Rouanet, Ancine, FSA. Vendettas egoicas e brigas de poder burocrático.
E no mais, o problema do cinema brasileiro continua sendo o roteiro.
Outro dia, sai de uma pré-estreia totalmente impressionada pelo valor de produção de um filme que tinha absolutamente tudo – jovens atores incríveis, cenografia de época, figurino, música mega cativante, montagem splish-splash! – pra arrebentar com o boxoffice e colocar toda a família junta na sala escura.
E, por que não dizer, tema e roteiro. As (indeléveis) concessões de enredo eram óbvias, auto-explicativas e… justificáveis, numa sociedade tão polarizada. Assim, ao fim da sessão mega emocionada, com direito a cenas de amizade dentro e fora da tela e a lágrimas comovidas tombáveis pelo patrimônio do intangível nacional, parecia a unanimidade que todos deviam pensar.
Foi o que pensei naquele noite.
E desde então, não paro de pensar no valor da sub-intriga: nas consequências trágicas e irremediáveis de não abrir nossas narrativas para o mundo, e não permitir que o mundo e a história passem por elas (como um sopro) e fazer de nossas histórias espelhos que só refletem narizes e umbigos. Uma história sem pano de fundo, um primeiro plano sem background cria um espectador igualmente desconectado do mundo que o circunda, um público sem empatia e sem limites.
No Brasil, nos acostumamos a tratar de nossas paisagens como algo insuportável: pra falar de meio ambiente temos que ser eco-chatos; pra falar de direitos humanos, nos tornamos defensores de assassinos, para sermos humanistas, viramos esquerdopatas. Vermelhos. Bolivarianos (sempre quis perguntar do que exatamente estão xingando alguém que assim o denominam). Cidadãos do mal. E o contraditório de um cinema não engajado vem em forma de varrer pra debaixo do tapete o meio ambiente, os direitos humanos e o Humanismo. Literalmente.
A ausência, dramaturgicamente falando, é algo muito complexo a se construir. Dar a entender que algo existe, mas não está lá onde deveria estar, é totalmente diferente do nada haver, nada existir. Da inexistência. Não mostrar a ditadura militar no segundo plano de uma história de amor passada nos anos 60 e 70 equivale a dizer que ela não existiu. Ou a escravidão, num drama épico do século 19. Ou o aquecimento global, numa ficção científica. E nós, imaginando que para sanar a polarização reinante na sociedade, deixemos de fora das nossas narrativas a ditadura militar; deixemos de lado a questão da escravidão. Deixemos pra lá a evolução da espécie.
Talvez a hora seja de, sem grandes necessidades de fazer filmes “cabeça” para falar da ditadura militar, simplesmente deixar a ditadura militar existir nos panos de fundos das nossas histórias de amor e amizade ou comédias. Deixar o que é ser. E assim transformar nosso cinema em espelho para nos vermos refletidos nele. Sem distorções ou photoshops.
PS: 1) parabéns à Estação Primeira da Mangueira pelo carnaval 2019;
2) a Terra não é plana.
3) noutras palavras sou muito romântica.
Menor pretensão de dar conta desse texto sem cometer spoiler. De antemão, désolée.
Após atravessar 41,5 episódios das 4 temporadas da série The Affair, e faltando 1,5 para ultrapassar o desfecho da história em busca apenas de compreensão, já me sentia familiarizada com o elemento fundamental da estrutura, do formato e do interesse da série: cada episódio relatado duas vezes, segundo sensibilidades e perspectivas de personagens distintos – devidamente anunciados em cartelas sobre fundo preto – e, idealmente, portadores de desejos, interesses e percepções antagônicos. Em seu protagonismo, a versão do marido prestes a trair sua mulher pela primeira vez em 20 anos de casamento, Noah encenava uma garçonete impetuosa, borderline e mal coberta por uma minissaia, enquanto, na vez de Alison, a dor que carregava pela perda do filho imprimia na tela um mood “qualquer maneira de amor vale a pena” vertiginoso e amoral. E ainda havia aquela pitada de “whodunit” tirado de um filme de detetive para não deixar nenhuma ponta de expectativa solta. E ainda havia a realidade do real e a do livro, rearranjada por Noah, sob a égide de grandes nomes contemporâneos da literatura americana.
Hal Hartley, outro autor americano, filmou Flirt, com apenas 20 minutos de diálogos, retrabalhados em diversas “versões”. E talvez por esse simples exercício quase tecnico, mergulhei na série ao longo de semanas.
Em que pesem os truques, o bom mesmo era lidar com a velha e boa humanidade dos personagens que se traiam, se odiavam, se vingavam e se perdoavam sucessivamente, sem nenhum deles jamais abrir mão definitivamente do outro. Como em qualquer novelão, mas no melhor estilo e com a virtude de escapar dos maniqueísmos moralizantes, com uma protagonista principal incrivelmente sob pressão.
Constatei, lá na temporada 3, e não sem um certo desconforto, a decisão dos autores de subverter esse pilar, que no entanto eu já sabia corroído pelo fatídico distanciamento dos 4 personagens centrais que não conviviam mais, e por isso não poderiam opor versões sobre os mesmos eventos.
E eis que finalmente se precipita o fim da série, com o anúncio totalmente inesperado da morte da personagem soberana da trama, Alison – pronto! Spoiler consumado.
A informação de sua morte intervém quando estamos na Costa Oeste, seguindo o drama do ex-marido de Alison, Cole, e os mistérios de sua biografia, a horas de fuso horário do que quer que esteja acontecendo de fato na vida de Alison que, da última vez que soubemos dela, sucumbia a crises de pânico e já não se sentia mais capaz de tirar vantagem de sua própria fragilidade para sobreviver.
E um saber difuso se instala por personagens subalternos, assim como pela fachada que Alison criou para si própria, antecipando um verossímil suicídio. Apenas o apaixonado Cole, mais por desespero que outra coisa, se apega a convicção de que ela ainda era capaz de sua própria transformação.
O penúltimo* episódio da série vai então se deitar sobre o que de fato aconteceu com Alison Bailey, se tornando sua versão suprema e definitiva dos fatos. Aliás, não mais versão; mas o que de fato ocorreu.
Só que não.
Essa impressão não dura. Pequenas discrepâncias com fatos reportados previously na autopsia, demonstram que a noite em que Alison morreu chovia; mas na cena que ela própria nos protagoniza, o céu está estrelado. E quando seu namorado, coitadinho, veterano de guerras do golfo e vítima da máquina de estado americano, que envia seus jovens para a morte e para o trauma, chega em sua casa trazendo flores e nos confessa o que a loucura da guerra o fez fazer e tudo o que ele sofreu, Alison dá desconto e perdão. Eles transam ao ar livre, sob o céu que os protege, e se prometem as curas de 12 etapas. Oing.
Só que não.
O episódio começa novamente, portando agora o ponto de vista … da mesma Alison. Como se o autor tivesse perdido a capacidade de oferecer uma realidade única e sensível do mundo e seguisse oferecendo versões não mais dos personagens; agora versões para os espectadores.
Dessa vez, chove canivete. E o namorado veterano traumatizado da guerra, com uma barba por fazer, não traz flores ou mimos mas ameaças em nome de sua própria vulnerabilidade no amor. E ao confessar os crimes perpetrados no sandbox, não há lugar para vulnerabilidade: matou crianças iraquianas porque podia matar.
E, quando confrontado às mentiras que criou, não hesita, porque podia, em matar Alison, jogar seu corpo no mar, limpar a casa de provas o incriminando. Para retornar à sua versão do mundo.
…
Todo esse texto porque, e perdido entre tantas humanidades dos personagens da série, pela primeira vez em minha vida, encarei no repertório americano o personagem do veterano de guerra americano não ser tratado em vítima traumatizado, mas em assassino puro e simples; porque podia.
E por isso também eu tiro o meu chapéu para The Affair. Sem precisar ir além.
(* o último capítulo ficou reservado para algum final psicanaliticamente feliz e pleno de luz e de sentido de vida, em meio a tanto Thanatos. Mas também, esperar duas revoluções numa narrativa e nenhuma catarse não faria sentido, né?)
Dedico esse post ao Jeremy Pikser, chapa roteirista radical americano que me mostrou tintim por tintim que o anti-belicismo dramatúrgico americano se preocupa mesmo é com o coitadinho veterano da guerra e vítima da máquina de estado que envia seus jovens para a morte e para o trauma.
Cinema é resistência resiliente.
E cinema é milagre.
E pra quem vê contradição,
eu vejo paradoxo.
Cinema é som e é imagem,
cinema é arte e é indústria, sendo linguagem.
É roteiro e é direção:
atores, artistas e técnicos,
bilheteria e crítica,
realidade e ficção,
drama, fantasia e terror.
E pra quem vê contradição,
eu vejo espelho da vida (e da alma) das pessoas
a mais poderosa ferramenta pra gente se enxergar
Cinema é resistência, resiliência e milagre.
Tudo junto e a cada quadro.