IN DUBIO PRO SOCIETATE

Ingriane Barbosa, 30, negra, empregada doméstica, pobre e mãe de 3 filhos, morreu em 16 de março de 2018, num hospital público da região serrana do Rio de Janeiro, vítima de uma infecção generalizada. Em seu útero, um talo de mamona, ingrediente principal de uma velha receita caseira para abortar.

Ingriane foi a última vítima do aborto clandestino no Brasil a atingir sinistra notoriedade na imprensa, extrapolando as editorias policiais e ganhando manchetes ao redor do mundo. Mas ela faz parte do grupo invisível de meio milhão de mulheres que se submete todos os anos ao aborto inseguro, arriscando saúde, liberdade e, em última instância, a vida.

 

 

Fatos e dados

  • 55.7 milhões de abortos são realizados todos os anos no mundo. Mais de 25 milhões (45%) de forma insegura em países pobres e/ou que condenam sua prática.
  • No Brasil, aproximadamente 500,000 mulheres interrompem a gravidez por ano. Apenas 0.4% delas, de forma legal.
  • No Brasil, 4 mulheres morrem por dia em consequência de abortos inseguros.

Brasil, país exportador da reputação de libertino/liberado, faz coexistir a sexualidade supostamente exuberante de seu povo e uma legislação que pune a mulher que se submete ao aborto com penas de até 3 anos de prisão. E para o agente que o pratica, a pena é de até 8 anos, para cada aborto praticado.

Em dezembro 2017, Rebeca Mendes, 30 anos, mãe de dois filhos, moradora da grande São Paulo e estudante de direito, pegou um avião para Bogotá, após ter exposto o rosto e a história: numa emocionada carta à ministra Rosa Weber, pediu à Suprema Corte Brasileira autorização para fazer um aborto legal e seguro, explicando em detalhes suas razões.

 

 

E diante da negativa que recebeu, foi exercer seu direito na Colômbia, onde o aborto, em caso de gestação que coloque em risco a saúde física ou mental da mãe, é permitido. O gesto de coragem de Rebeca não foi em vão, ajudando a reavivar o debate em todas as esferas do país.

Em agosto 2018, a Suprema Corte brasileira realizou consulta pública sobre a possível inconstitucionalidade da criminalização do aborto, estabelecida por lei datada de 1940 – segundo a Dra Neide Mota, médica brasileira que assumiu orgulhosa e publicamente fazer abortos, “uma lei do tempo em que não havia nem bombril para arear panela”.

A alegação inicial se baseou na violação dos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da não discriminação, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante de mulheres, adolescentes e meninas, previstos na Constituição Federal. O momento se transformou em ocasião preciosa para agitar o debate, confrontar argumentos e espanar velhos conceitos.

Mas esse élan positivo foi estancado pelas ameaças de atraso que hoje pairam sobre a sociedade brasileira. E no que tange os direitos reprodutivos, o retrocesso brasileiro não está sozinho. Ao contrário e infelizmente, ele se revela eco de tantos outros retrocessos mundo afora – basta se referir a estados americanos (Ohio e Alabama, por exemplo) que hoje propõem pena de morte ou prisão perpétua para mulheres condenadas por aborto.

 

Proposta de documentário sobre um  sociedade em movimento

Ingriane já foi condenada e morreu algemada numa maca de hospital.

Mas Lulu, a mulher que realizou seu aborto – igualmente negra, pobre e mãe de 3 filhos –, foi presa, acusada pelo artigo 126 do Código Penal, com agravante de morte, e deve ser pronunciada ré nas próximas semanas. Ela será levada diante de um júri popular, num julgamento que se anuncia fogueira para queimar a bruxa curandeira, que ganha a vida introduzindo galhos de uma planta venenosa dentro do corpo de mulheres desesperadas – “Ela aprendeu fazendo o mesmo em seu próprio corpo”, disse seu defensor público. O talo de mamona que ela usou é um segredo transmitido há décadas (séculos!) entre mulheres, e a única opção para milhares delas.

 

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De acordo com a atual secretária de estado para assuntos de mulher, nesse novo Brasil que desponta, governado por igrejas e templos, “a mulher nasceu para ser mãe e ela não deveria precisar sair (sic) de casa” .

Lulu caminha para a fogueira. Mas, antes de queimar, será mostrada como exemplo para encorajar cada menina a se vestir de rosa e retornar para o lugar do qual não mais precisará (sic sic) sair.

 

Estrutura narrativa

Na proposta estrutural deste documentário, fazemos da Consulta Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, a partir da ADPF 442, o elemento desencadeador e o epicentro de nossa investigação/reportagem, e dela partimos para testemunhar do “estado de coisas” sobre o tema em nossa sociedade.

 

Através de personalidades presentes por ocasião do evento no STF, autoridades experts em diversos campos de atuação e disciplinas, seguiremos os corpos médico, jurídico, político, religioso e social, cobrindo todos os espectros de pensamento e opinião sobre a questão e tratando todas essas perspectivas como as mechas de uma trança que ofereça visibilidade conjunta e articulada da questão e permita compreender impasses e propor reflexões sobre o tema, através do acompanhamento da vida e trabalho de varias mulheres.

No centro dessa estrutura narrativa, o caso de INGRIANE BARBOSA nos serve de âncora estabilizadora de todos os pontos de vistas, por fazê-los gravitar em torno da sensibilidade do humano: um caso, um indivíduo, uma vida; ou, de modo mais amplo, várias vidas.

O projeto IN DUBIO PRO SOCIETATE trata, com uma premissa fundamental e estrategicamente otimista, de documentar o andamento atual do processo de discussão e re-delineamento do entendimento jurídico e social no que tange o tema do aborto e de sua criminalização pelo Código Penal e pela sociedade brasileira.

 

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