o LER do escrever

Alguém disse, com muita delicadeza e propriedade,  que “o cinema de um país é o espelho de uma casa, sem o qual aqueles que ali vivem não podem se enxergar”. Gosto muito de pensar que as histórias que criamos para as nossas telas ajudam os brasileiros a se ver e se saber.

Sobre a prática do script doctoring, minha experiência me proporciona alguns modelos de relatórios de leitura, além do exercício de uma certa habilidade ‘diagnóstica’ (já que estamos falando de medicina), adquirida por mera recorrência. Mais adiante, vamos falar sobre esses diferentes modelos que logicamente apenas podem referir-se a um modelo específico de produção e as características próprias de uma cinematografia e de seu público original. Ou seja, e por mais global que nosso mundo pretenda ser, o script doctoring de um filme francês não vai trabalhar com os mesmos parâmetros que o de um filme americano, ou indiano. Mesma coisa no que tange a uma comédia e um polar.

Mas, antes disso, o que me interessaria focalizar prioritariamente é um dos meandros da escritura mais misteriosos para o autor: paradoxalmente é da leitura que gostaria de falar.

Já me perguntaram se a consciência dos mecanismos de articulação narrativa não impedia ou cerceava a criatividade. Parei pra pensar antes de responder e me dei conta de que eu não tenho consciência dos mecanismos narrativos quando estou escrevendo e criando uma história; mas sim, quando a estou desenvolvendo.

Escrever Dramaturgia (para não correr o risco de extrapolar presunçosamente para outras disciplinas da criação humana) compõe-se intrinsecamente dos atos de Escrever e Ler. E eu não digo isso de maneira retórica, mas sim literal. E o processo de desenvolvimento de um roteiro comporta a etapa em que se cria (personagens, linhas de diálogos, motivações e conflitos, inclusive incorporando um trabalho anterior de pesquisa), de maneira fluida, em alternância ao momento em que se analisa, pondera, pesa e mede, ajusta. Esse segundo momento é habitado basicamente pela habilidade de se ler (subentende-se ler o que está escrito).

Autores muitas vezes se perdem na ansiedade do escrever, equívoco muitas vezes estimulado pela idéia de que o autor dramatúrgico tenha, como artista, a necessidade de se expressar; como se ele escrevesse com o intuito de dar vazão, expelir, botar pra fora…

Uma bela definição sobre o figura do autor é: o autor é um espectador desesperado em busca de uma história que nunca lhe foi contada. Há, nessa sentença, um desejo de onipresença; mas há também a humilde confissão de deslocamento forçado, justificando a existência do autor pela necessidade (essa anterior e original) do leitor e/ou espectador. E do quão vazio o primeiro lugar pode ser sem a presença do segundo para justificá-lo.

Então, seguindo a minha linha de raciocínio, e para esquematizar a idéia que proponho, poderia definir o leitmotiv “Criar escrevendo, e desenvolver/analisar lendo”, ambos convergindo enquanto parte do processo cíclico, do qual o roteiro é o fruto em porvir.

E nesse ponto, finalmente, eu deságuo no tema da minha abordagem, e no papel do Script Doctor, que, ao meu ver, é circunscrito pelos limites deste LER.

A LEITURA

Saber ler é a habilidade número UM nesse ofício; saber ler, exatamente como o psicanalista sabe escutar: com empatia e sem uma presença muito assertiva. Se predispor a buscar DENTRO do material sobre o qual se trabalha, e nunca fora, não só diagnóstico, como igualmente os ingredientes do tratamento e da prescrição.

E é assim, apoiada no método “freudiano”, que exerço esse ofício. Me dispo de toda prerrogativa de autor; deixo em casa, se possível, meus preconceitos e minhas opiniões. E, ainda que isso me custe, reservo à minha visão de mundo e à minha escala de valores o benefício da biodiversidade. Me entrego à leitura e me integro à progressão. Anoto, desde a primeira leitura, tudo o que entendo, interpreto, percebo ou desconfio; o que me faz suspeitar e o que me entrega o jogo; o que me suscita uma idéia e o que me cria uma expectativa. E vou avançando com a progressão, me posicionando da maneira mais neutra diante do texto em si, porém completamente alerta a toda e qualquer articulação entre cenas, linhas de diálogos, ou qualquer outro elemento intervindo na construção narrativa.

(faço aqui um parênteses sobre o problema do texto, que, acredito, é o primeiro adversário do ofício: não se deixar enganar pela natureza falsamente literária de um roteiro. Belas frases não correspondem a cenas intensas e figuras de estilos geralmente não constituem imagens ou sons significantes).

Concluída minha primeira leitura e tendo estabelecido com o material um nível de empatia satisfatória, o ideal (ainda numa tentativa de esquematizar) seria relevar apenas uma frase ou sentença, linha de diálogo na maioria das vezes, proferida pelo protagonista em bom número de casos, que vai me servir de insight, aquilo que o roteiro quer (e poderia) ser, ou aquilo que ele não consegue e está me anunciando.

E é por ali que eu ataco, sentindo que, aquela frase em específico, quem a está pronunciando é, na verdade, o autor.

O DIAGNÓSTICO

Não é magia e nem misticismo. Mas é algo um pouco menos superficial; digamos, uma conexão que eu tento estabelecer com a subjetividade do material. E que não me isenta do trabalho posterior no específico de cada página, de cada personagem e de cada cena.

Para exemplificar, eu relataria um episódio bastante primário retirado do baú das experiências. Em pleno meio do segundo ato, a após um primeiro bastante agitado, um personagem se dirige ao outro.

FULANO

E agora? O que fazer?

CICLANO

Humm… vamos tomar uma cerveja.

Em termos mais objetivos, esse insight deveria resultar em um diagnóstico global do material, como este tirado de uma primeira página de relatório de leitura, feita por uma analista americana da indie major Fine Line:

BRIEF: Good ideas and highly-stylized vision evident, but story needs cutting in the first half and development in the second.

Categórico, não? É claro, resta a encarar o caminho que leva a tal julgamento peremptório. Num conjunto de anotações e referências a cenas ou páginas do roteiros, faz-se o embasamento do que se considera ser o dispositivo problemático da história, tal ela se encontra em determinado estágio do desenvolvimento, se apoiando sobre parâmetros analíticos claramente delineados, como Estrutura (começo-meio-fim, ritmo, tom), Personagens (arcos e inter-relações), Trama (desejo-motivação-conflito) e Ferramentas de escritura (diálogos, gramática visual, humor, suspense, mecanismos dos Gêneros, etc).

O OUTRO

Haja visto que o roteiro não é algo constitutível em uma única etapa, com ou sem o diagnóstico profissional de um Script Dr, o processo de escrever um implica em, sucessivamente, avançar criativamente e voltar atrás analiticamente.

É claro, existe uma dose de subjetividade e duas pessoas podem ter diferentes compreensões de uma mesma cena, tanto nas salas de cinema, como na leitura analítica do roteiro. Talvez por isso, a empatia, não só com o roteiro, mas igualmente entre analista e autor, seja um verdadeiro fator a ser levado em conta nesse processo.

O RESUMO

Seguindo o meu curso, vem agora uma tarefa que poderia parecer curiosa e desnecessária; e, no entanto, ela é fundamental: se ater a expor ao interlocutor (seja ele autor, diretor ou produtor), a história que o seu roteiro conta, sem direito a nenhuma opinião. Poderíamos crer que eles já a conhecem, suas histórias – eis aí a surpresa. Não, eles se fixaram sobre a história que se decidiram a contar quando começaram a escrever. E esta história que eles conhecem é bastante poluída pelas intenções que ficaram na cabeça, pela capacidade que todos temos que preencher o vazio de um sentido só nosso e o talento para adivinhar o que (só nós) já sabemos (e isso oferece uma idéia do quão difícil é se ler).

A sinopse de um relatório de leitura pode tomar grande parte do documento que normalmente remetemos ao ‘cliente’ (digamos 5 ou 6, de um total de 9 ou 10 laudas). Nela, seguindo o recorte do roteiro analisado, ofereço ao autor a ocasião de perceber o que é exteriormente visível no que ele escreveu, o que foi por ele representado no curso da narrativa. E o que não foi.

Igualmente importante, é resumir, a partir da leitura, um logline do projeto, tanto ao nível da temática, quanto da trama.

Cabe ainda precisar que, a essa altura, uma segunda e terceira leitura já se impuseram, incorporando inclusive as notas marcadas na primeira etapa. Terão sido então verificadas, as promessas cumpridas, as expectativas frustradas, as representações logradas (ou não). Poderemos então passar a “receita” do tratamento.

NOTAS DE DESENVOLVIMENTO

Tendo, no decorrer de sucessivas leituras, já organizado a percepção do que um roteiro pretende ou tem o potencial para ser e do que o impede, naquele estágio, de sê-lo, trata-se agora de propor eixos de abordagem ou mecanismos que possam levá-lo a tornar-se aquilo que seus criadores queriam para ele. Isso, sem pretender abordar diretamente o trabalho de reescritura.  Propor, sugerir, apontar, de maneira devidamente embasada (já nos comentários do diagnóstico) e antevendo-se um determinado resultado em termos dramático-narrativos.

Atenção, o engajamento do script dr na escritura de uma nova versão do roteiro avaliado pode ser (e muitas vezes é) um dos desdobramentos possíveis da relação iniciada num contrato de script doctoring. Mas é importante ressaltar que ele ultrapassa em muito os limites de atuação inicial e demanda a reconfiguração completa da relação, supondo novas prerrogativas e novo contrato. Nesse momento, ele passa a Escrever.

© Juliana Reis

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