A Comédia… vem aí!

A comédia

Um gênero menosprezado

Apesar de sua grandeza e utilidade, a comédia é ainda freqüentemente alvo de desvalorização. É fato que, como pondera Gilles Lipovetsky [120] em A era do vazio, rir tornou-se imperativo social generalizado nas nações ocidentais. A irrisão, a paródia e a zombaria são onipresentes (muitas vezes acompanhadas de agressividade). Na televisão, tornou-se obsessão. Infelizmente, esse fenômeno resultou em uma tendência a vulgarizar a comédia, em vez de enobrecê-la. Apesar de Aristófanes, Molière, Chaplin, Lubitsch, A megera domada ou O mercador de Veneza, ainda temos dificuldade em pensar que humor e arte possam formar bom par. “Rimos do começo ao fim, mas é só isso” é um dos mais clássicos (e mais trágicos) comentários da crítica. Ao passo que, quanto mais hermética uma obra séria, mais celebrada será, tratada de difícil, frágil ou ambiciosa, ainda que seja simplesmente um tiro pela culatra. É como esquecer algo fundamental: se é engraçado, é justo. A comédia e, a fortiori, a boa comédia é sempre um comentário pertinente e bem sucedido sobre a natureza humana. Uma comédia fracassada não tem desculpas – e, no entanto, um comédia também pode ser frágil. Oscars, césars e outras palmas de ouro raramente recompensam comédias. Gérard Depardieu foi nomeado por seu papel de palhaço branco (o palhaço sério) em Os compadres, mas não Pierre Richard, o palhaço augusto, que, no entanto, fez um trabalho formidável. Os atores ditos “cômicos” devem aguardar convite para atuar em um filme sério, antes de ser notados. Pensemos em Michel Galabru em O juiz e o assassino, Dan Aykroyd em Conduzindo Miss Daisy ou Coluche em Tchau mané. Ora, eles já se encontravam no auge de suas carreiras (e de suas artes) em Adorável gozadorOs irmãos cara-de-pau ouInspecteur La Bavure. Para esses fenômenos, podemos propor algumas causas.

1- A comédia, como acabamos de ver, é um atentado à vaidade humana, trazendo-nos sempre de volta a nossa condição terrestre. Encena os entraves do inconsciente, enquanto a tragédia e o drama sério atribuem ao ser humano importância que ele talvez não tenha, mas que o envaidece, seja na condição de autor, crítico ou espectador.

2- Falta-nos distanciamento. O olhar que cada um de nós pousa sobre a própria existência é impregnado de lamentação, mais do que de ironia. Estamos prontos a considerar nossas vidas trágicas ou melodramáticas, eventualmente alegres – quando não há conflito –, mas raramente cômicas. E isso é tanto mais verdadeiro quanto mais próximo. Assim, obras que mostram situações terríveis temperadas com um pouco de humor e são acusadas de levianas: Inferno 17, por exemplo, cuja história se passa em um campo de prisioneiros alemão. O filme foi condenado injustamente e só redimido pelos depoimentos de ex-prisioneiros relatando que as piadas e farsas eram, sim, parte integrante do quotidiano dos campos, tentativa talvez de escapar à loucura.

3- A comédia é democrática – uma boa piada é capaz de reunir filósofo e camponês, jovem e velho, crente e ateu. É também anti-elitista e, como tal, frustra os que almejam o poder (seja ele intelectual, religioso ou político). Além disso, por ser popular, é comercial, o que, para alguns, implica incompatibilidade com arte.

4- Ainda que a leveza da comédia deixe suspeitar facilidade em sua escritura, ela é, de todos os tratamentos, o que demanda mais competências. Só o resultado é leve, e não o (árduo) trabalho e o talento exigidos para a obtenção dessa leveza. A comédia é de delicada manipulação, exige técnica, e fazer rir é muito mais difícil do que atingir um tom sério. EmCrítica da Escola de mulheres, Molière coloca na boca de Dorante: “Penso que é muito mais fácil pendurar-se em grandes sentimentos, gritar contra a sorte e acusar o destino, insultar os deuses, do que penetrar decentemente o ridículo dos homens e colocar agradavelmente em cena os defeitos de todo mundo.” E Mario Monicelli [134] vem confirmar: “Fazer um filme dramático me é muito mais fácil do que uma comédia.”. Bem como François Truffaut [203]: “Qualquer um que se tenha aproximada da escritura de roteiro sabe que a comédia é o gênero mais difícil de escrever, aquele que exige o máximo de trabalho, de talento e de humildade também.”

Como corolário, existem muito mais dramas do que comédias, e ainda menos comédias bem-sucedidas do que dramas bem sucedidos. No cinema, a comédia é representada por um pequeno número de filmes, o que a faz ser assimilada como gênero, dividindo espaço com o faroeste, o policial ou a “comédia” musical (cf. página 71). Hawks [83] declara que a coisa mais difícil no mundo é por as mãos em uma história engraçada.

5- E se o palhaço fosse menosprezado tanto por ditadores, igrejas ou certos intelectuais pela simples razão de ser o ser humano mais lúcido em relação à vida, o mais inteligente, aquele que vê com clareza através do jogo das relações humanas e que joga luz sobre as falhas dos poderosos? O desprezo do qual o palhaço é alvo poderia então ser visto como medo ou ódio. Talvez fosse com o intuito de contrabalançar essa insuportável perspicácia que os príncipes escolhiam bufões feios ou deformados.

Contudo, cabe notar que, em relação à comédia, o desprezo é originado entre os formadores de opinião (críticos e profissionais), e não em meio ao público. Na França, os maiores sucessos do cinema se encontram tanto entre as comédias (La chèvre, O trouxa, O jantar dos idiotas, A grande escapada, A guerra dos botões, Três homens e um bebê, A vaca e o prisioneiro, Os visitantes, etc.) quanto nos filmes de aventura (Ben-Hur, Era uma vez no oeste, O mais longo dos dias, A ponte sobre o rio Kwaï, etc.). Para não rir de sua vida, o espectador vai ao cinema ou ao teatro para rir da vida alheia. Cabe notar que as estatísticas americanas revelam algo diferente: nos Estados Unidos são os contos de fada modernos que encabeçam as listas de sucesso de bilheteria (Batman, Tubarão, E.T., Guerra nas estrelas, Indiana Jones, Jurassic park, O senhor dos anéis, Titanic, etc.). Isso talvez denote uma diferença de mentalidade entre os dois povos. A respeito de cinema americano, Pauline Kael [102] escreve que “a indústria do cinema, por medo, sempre glorificou em seus filmes a idéia da coragem”. Em Tiros em Columbine, Michael Moore desenvolve a idéia de que a cultura de massa americana é fundada sobre o medo. Alguns acrescentam que a celulite e as armas de fogo são um meio de exorcizá-lo. Existe, porém, uma terceira maneira: os contos de fada modernos.

A história nada revela, mas eu apostaria que a mulher que animava seu teatro de pão no campo de concentração de Stutthof (cf. página X) se empenhava em fazer seus espectadores rirem.

Um gênero terapêutico

Que a verdade seja dita: o riso é útil ao ser humano, sobre o qual tem efeito curativo. Em seu artigo O humor [71], Freud explica que a atitude humorística é uma recusa à dor, uma proclamação de invencibilidade do eu, uma afirmação do princípio do prazer, que tem o grande mérito de não nos permitir sair do terreno da saúde psíquica, ao contrário de outros meios de defesa contra a dor, como a neurose, a loucura, o êxtase ou o isolamento em si. Segundo Boris Cyrulnik [48], “o humor é um precioso fator de resistência”.

Diversas pesquisas colocam em evidência a ação do riso sobre a saúde mental e física, diminuição do estresse, aumento da longevidade, fortalecimento do sistema imunitário. Nos anos 60, num jornalista americano, Norman Cousins [45], foi diagnosticada uma forma grave de espondilite anquilosante. Um dia, após assistir a um filme que o fez rir, ele se deu conta do desaparecimento de sua dor, e decidiu, então, tratar-se pelo riso, assistindo a comédias, diariamente, lendo histórias engraçadas, se divertindo de todas as maneiras, e assim se curou. Essa história não é uma piada. Nos dias de hoje, muitos palhaços trabalham em hospitais, praticando a chamada geloterapia, a terapia pelo riso.

A comédia tem outra característica psicossomática: ela desconecta o hemisfério esquerdo e abaixa a guarda do receptor, contornando seu mental. O humor é como uma espécie de hipnose ericksoniana. Devido a essas capacidades ele é utilizado em psicoterapia ou no ensino budista, quando é muito útil para repassar a profundidade do conteúdo de sua mensagem. Um espectador que ri torna-se mais receptivo e compreende melhor o que é dito. Danis Tanović [191] relata que, depois da acolhida de seu curta-metragem L’aube – que nada tem de realmente engraçado – ele compreendeu que deveria ter colocado humor em Terra de ninguém para que o público pudesse entender o que ele queria dizer sobre a guerra. Discurso equivalente é o de Hiner Saleem que, para divulgar a causa curda, optou pela comédia (Vive la mariée… et la libération du Kurdistan), em vez de fazer um filme engajado e grave como teriam desejados alguns grupos do Curdistão.

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