Uma introdução

Me conte uma história

Durante a segunda Guerra mundial, no campo de concentração de Stutthof, uma mulher de nome Flora dirigia um teatro de pão. Com uma parte de sua magra ração, ela modelava pequenas figurinhas. À noite, escondidas no banheiro, ela e outras prisioneiras animavam seus atores de miolo de pão, diante de uma platéia de famintos e condenados. Esta história foi relatada ao dramaturgo Joshua Sobol por uma sobrevivente do holocausto, Irena Lusky, na época em que Sobol realizava pesquisas sobre o teatro do gueto de Velenious para sua peça Gueto. Vale como uma demonstração de que, mesmo nas circunstâncias mais terríveis, o ser humano necessita que lhe contem histórias.

Uma necessidade nada supérflua. Podemos viver sem praticar esporte, sem viajar, sem ter filhos… Não podemos viver sem histórias. O relato, seja ele endereçado a nós mesmos ou aos outros, reportado ou inventado, que sua forma seja literária ou dramática, realista ou simbólica  (haja visto as parábolas bíblicas ou os contos de fada) é tão vital à nossa psique quanto o oxigênio o é ao nosso organismo. Em Psicanálise dos Contos de Fada, Bruno Bettelheim demonstra o quanto o conto é útil para a criança. Não somente porque ele a distrai e alimenta seu imaginário, mas igualmente, e sobretudo, porque ele a ajuda a resolver seus conflitos, lhe dá esperança para o futuro e lhe permite amadurecer sem se tornar um psicótico. Em resumo, porque ele a ajuda a aprender – e a apreender – a vida.

Uma forma de narrativa fascinante

Tornado adulto, o ser humano experimenta ainda a mesma necessidade de histórias. Em primeiro lugar, é claro, elas servem para distrair, no sentido etimológico do termo, ou seja “extrair do todo”, fazer esquecer o cotidiano. Mas elas fazem muito mais do que isso. Afinal, um fogo de artifício, um copo de uísque, um jogo de futebol, um programa de TV, uma visita ao Corcovado, distraem do mesmo jeito. Mas, o que eles não conseguem é nos permitir o acesso ao pensamento e às emoções do outro. E isso não tem nada de banal. Um ser humano conhece bem seu próprio pensamento, seus desejos e suas emoções parasitas. Mas conhece mal sua imagem. Quanto aos outros, é o contrário: Nós conhecemos bem suas imagens e suas emoções, e em nada seus pensamentos ou desejos.

A dramaturgia possui esta faculdade de reunir o todo, de fazer confluir imagem, pensamento, desejo e emoção, de permitir ao espectador de se fusionar parcialmente com o outro.

Muito interessante a ressaltar é que este outro seja, ao mesmo tempo, um personagem de ficção – nós iremos em breve denominá-lo Protagonista – e  o autor que se esconde por detrás, como Flaubert se escondia atrás de Ema Bovary (Madame Bovary). Em dramaturgia, os exemplos abundam : Sófocles se escondia atrás o velho Édipo (Édipo em Colona), Molière atrás de Arnolfo (Escola de Mulheres), Hitchcock atrás de Manny Balestrero (O Homem Errado), Hergé atrás de Tintin, os Dupondt e o Capição Haddock reunidos (Tintin), etc. Entre Carlitos e Chaplin, a relação é ainda mais patente. A dramaturgia cria uma dupla ligação : entre autor e espectador, o que é próprio a todas as artes, e entre o personagem e o espectador, específico a ela, processo que chamaremos de identificação. Freud, Nietzsche e tantos outros afirmam que este fenômeno de identificação é um dos prazeres fundamentais do drama, que estaria ligado ao seu efeito terapêutico. Na Índia, certos médicos contam a seus pacientes uma história, apropriada aos sintomas apresentados, ao invés de lhes receitar medicamentos.

Podemos também estabelecer um paralelo com o mundo dos sonhos, com o qual ele entretêm singulares semelhanças. O ser humano é igualmente ator e espectador de seus próprios sonhos, mesmo si estes últimos nem sempre contam uma história. Ora, é precisamente a posição do espectador, quando ele se identifica ao protagonista de uma obra dramática. E o sonho, como sabemos, é, ele também, um alimento vital para nosso psique.

Os origens do drama

A dramaturgia se situa na essência de todo ser humano. Os historiadores do teatro têm o hábito de fazer nascer a dramaturgia do rito religioso. A imitação das ações humanas (ou divinas) teve lugar inicialmente no espaço do sagrado, inclusive nas civilizações ditas primitivas, fazendo dos sacerdotes, seus primeiros atores. Quanto aos temas, eles tratavam das atividades humanas fundamentais (nascimento, morte, caça, etc.) e dos elementos naturais (tempestade, sol, germinação, etc.).

Aos poucos, a representação se enriquece. E, sobretudo, ela passa do sagrado ao profano. E isso, mesmo se ela soube guardar algo de sua natureza religiosa (no sentido etimológico do termo). No Ocidente, este fenômeno ocorreu em duas ocasiões: no século V a.C. na Grécia, e no fim da Idade Média na Europa.

Entretanto, poderíamos propor uma outra origem para o drama, de natureza distinta e, quem sabe, mais profunda. Um bebê que aprende a andar ou a falar é movido por uma força instintiva: a imitação. Vale dizer que ela representa as ações humanas de seus pais e irmãos e irmãs. Um pouco mais tarde, a criança não pára de imitar seus precursores. Ela faz mesmo mais do que isso: ela se cria um universo mais ou menos fictício, onde também interpreta todos os papéis. Fabulação e duplicação fazem parte de sua vida cotidiana. Concretamente, em nos situando dentro desta zona simbólica que se encontra entre realidade e fantasia, a dramaturgia se assemelha ao jogo do “faz de conta” das crianças. Ousaríamos mesmo afirmar ser o seu equivalente adulto.

Resumindo, o primeiro ator-espectador-autor dramático não seria o feiticeiro pigmeu ou o sacerdote grego, mas a criança que nós todos fomos. Esta é, em parte, a razão pela qual ela se encontrará frequentemente no centro das reflexões levantadas nos próximos textos.

A sublinhar que a criança da qual falamos é antes de mais nada espectador. E, em seguida, autor ou adaptador, e enfim ator.

Trechos de La Dramaturgie, de Yves Lavandier,
Tradução de Juliana Reis

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