Preparação

Quem semeia vento colhe tempestade

(fragmentos da edição inédita em Português de A DRAMATURGIA, de Yves Lavandier)

“Ajuda a ti mesmo que o céu te ajudará.” (outro provérbio célebre)

“Não se deve mostrar um fuzil em uma cena se ninguém tem a intenção de atirar”
(Anton Tchekhov [193])

“A arte do teatro é a arte das preparações.” (Alexandre Dumas Filho [58])

UMA ANTECIPAÇÃO FRUSTRADA

Apesar da obviedade da cena a fazer, por vezes um autor faz promessas que ele acaba por não cumprir.

Em O silêncio dos inocentes, Clarice (Jodie Foster) faz treinamento para ingressar no FBI e deve investigar os crimes de um perigoso psicopata. Para compreender a mentalidade deste último, seu superior lhe sugere visitar um outro criminoso, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), ex-psiquiatra encarcerado em uma prisão de segurança máxima. Lecter tem a reputação de ser uma manipulador diabólico e Clarice é alertada: “Não lhe revele nada sobre você mesma e, sobretudo, não o deixe penetrar em sua cabeça”. Nas entrelinhas: “caso contrário, isso te custará caro”. Pouco tempo depois, ficamos sabendo que Lecter conseguiu levar seu companheiro de célula à morte. Nos dizemos que, realmente, para Clarice, todo o cuidado é pouco. E assim, quando em sua primeira conversa, Lecter lhe pede informações sobre sua vida pessoal, nos inquietamos e esperamos o pior. Mas não! Clarice acaba por lhe fazer confidências mas isso fica sem conseqüências, bem como o anúncio feito, sem pagamento.

Se ficamos decepcionados é porque perdemos a ocasião para um conflito suplementar. No caso de O silêncio dos inocentes, não se trata apenas disso. O roteiristas não se preocuparam em criar uma ligação entre as confidências de Clarice e a evasão de Lecter – que uma tenha propiciado a outra, por exemplo –, o que teria dado mais rigor e coesão ao filme, além de demonstrar que, na tentativa de prender um psicopata, a estagiária do FBI teria deixado escapar um outro, ainda mais psicopata e perigoso. Enfim, o propósito sobre a impotência da sociedade americana diante dos seus loucos teria sido ainda mais contundente.

Em O exterminador do futuro 2, John Connor (Edward Furlong), sua mãe (Linda Hamilton) e o gentil robô (Arnold Schwarzenegger) são perseguidos por um maldoso robô transformista, o T-1000 (Robert Patrick). Ao término de uma das cenas de perseguição, o T-1000 deixa um pedaço de metal (sua carne) no teto do carro dos protagonistas. John Connor o pega com as mãos nuas e o joga na calçada. T-1000 chega e o pedaço de metal começa a fundir se reintegrando o corpo de seu proprietário. Ora, foi plantada – aliás, de maneira insistente e desnecessária – a informação de que o T-1000 possui a capacidade de se travestir em qualquer ser humano que ele tenha tido a ocasião de tocar. Esperamos todos que ele se transforme então em… John Connor e instale a confusão entre os co-protagonistas. Nada disso acontece e o robô prefere aparecer na pela da mãe, no momento em que o conflito se resolve. Ao argumento de que o robô não teria nenhum interesse em se fazer passar por John Connor (já que o que ele quer é apenas matá-lo), a resposta fica no ar: porque então anunciá-lo?

Em meio de Minority report, o médico que acaba de transplantar olhos em John (Tom Cruise) insiste: “Espere doze horas antes de retirar as bandagens, senão você ficará cego”. Inclusive um despertador é acionado. O problema: Jonh é procurado por seus ex-colegas e eles estão por perto. Scanners ambulantes são encarregados de vistoriar todos as identidades oculares no prédio onde John se esconde, enquanto o despertador indica “- 6 horas”. Para não ser traído pelo calor de seu corpo, John mergulha numa banheira com água gelada. Após várias peripécias, ele é obrigado a retirar as bandagens do olho esquerda para o controle dos scanners. Todos pensamos que ele vai ficar cego. Mas não; não se toca mais no assunto*.

* Nota de pé de página:
Em uma versão do roteiro disponível na Internet, o anúncio é claramente explorado: o olho esquerdo de John se torna leitoso no meio do controle de identidade e ele passa o resto do filme com um tapa-olho. Por uma razão desconhecida, Spielberg não reteve a idéia na filmagem, sem ter se preocupado em retirar também o anúncio. Este não é um caso isolado. Sabemos que um roteiro pode ser parcialmente reescrito na mesa de montagem. Certas cenas podem ser abandonadas porque não funcionam como esperado. É um caso entre outros, que justificaria a presença do roteirista, já que, quando uma cena a fazer acaba nas sobras, o montador ou diretor não tem obrigatoriamente a presença de espírito de retirar seu anúncio. O mesmo erro pode ser cometido nas adaptações para o teatro, que cortam no comprimento das cenas ou as invertem (cf. a versão curta de Hamlet, dirigida por Kenneth Branagh). O roteirista Samson Raphaelson conta que Ernest Lubitsch lhe teria chamado no set, em plena filmagem, para verificar se ele poderia mudar uma linha de diálogo. “Imaginem este homem, mais apto para escrever um diálogo do que qualquer outro diretor. (…) Ele tinha a inteligência de supor que a mudança que tinha imaginado poderia eventualmente ter incidência sobre um outro ponto da narrativa, sem que ele pudesse se dar conta, criando uma incoerência com um personagem ou uma situação. E por isso reclamou minha memória do roteiro e meu senso de caracterização (…) Por uma linha de diálogo!”  Na França, vemos muitos telefilmes, cujos diretores possuem um ego mais inseguro que Lubitsch, e ainda assim, se recusam a consultar seus roteiristas, durante ou depois da filmagem, e se encontram  com buracos e incoerências na sala de montagem.

Em Le chant de la baleine abandonée, peça de Yves Lebeau mostra repetidamente um fuzil que, contrariamente ao preceito de Tchekhov apresentado em início de capítulo, não serve para nada. O desperdício é ainda pior na medida em que um fim lógico para a peça teria sido o assassinato da mãe pelos três filhos (com o famoso fuzil, é claro!). Eles que queriam se ver livres, enviando-a para uma pensionato de idoso, teriam acabado com um cadáver nas mãos!

Que os autores destas obras não tenham conseguido melhor explorar seus anúncios é uma coisa. Não se trata de dizer que é fácil, longe disso! Mas que um diretor, voluntariamente, deixe uma preparação sem pagamento e o espectador a ver navios, é uma outra. Diante da impossibilidade de pagar uma promessa, o melhor ainda é não prometer nada e retirar as tochas da cesta do malabarista.

Resumindo:
– toda informação deve servir;
– não se deve prometer, o que não se pode cumprir.

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