Ironia Dramática

A participação do público

(fragmentos da edição inédita em português do livro A Dramaturgia, de Yves Lavandier)

Como demonstram todos esses exemplos, a ironia dramática é uma ferramenta extraordinária de participação do público; ela coloca o espectador em situação muito privilegiada em relação à vítima, situação que, infelizmente, não lhe é oferecida com freqüência, quando se trata de sua vida. Fora da ficção, quase sempre avançamos pelo mundo às cegas e, apesar de tentar planificar nossa vida, criando marcas de identificação e objetivos, nem sempre conseguimos – como, aliás, muitos personagens da dramaturgia – fazer as coisas acontecerem como o previsto. Alguns evocarão o destino. O acaso também tem seu papel. Nosso inconsciente (a parte, portanto, invisível do iceberg) é que está, muitas vezes, na origem desses inesperados.

Além disso, somos bombardeados por inúmeras mentiras. “Vivemos todos dentro de uma grande mentira”, afirma Viktor (Al Pacino) em S1m0ne, filme escrito por Andrew Niccol, autor de vários roteiros (S1m0ne, Gattaca – a experiência genética, Truman show) abordando o tema da grande mentira pública. Isso dito, as mentiras não vêm todas de políticos, publicitários ou dirigentes de mídias. A mentira começa em nossa infância e dentro do círculo familiar. Como explica Claude Steiner [189], a mentira pode ser expressa por palavras, mas igualmente por atos. Por exemplo, quando um pai faz o contrário do que ensina ao filho, está mentindo. Quando negamos o que pensamos para não nos comprometer, estamos mentindo. Ora, a mentira atinge a capacidade de consciência do ser humano e, em fortes doses, pode levar à loucura.

Podemos agora facilmente compreender a enorme satisfação que experimenta o espectador quando, diante de seus olhos excepcionalmente lúcidos, personagens cegos se agitam, vítimas de mentiras cujo alcance só ele pode compreender, e caem em armadilhas que só ele é capaz de evitar. Que prazer quando o autor convida o espectador a tornar-se seu cúmplice, promovendo-o à superioridade em relação a certos personagens e oferecendo-lhe as chaves dos segredos da intriga. O interesse que a dramaturgia suscita há 25 séculos tem, certamente, algo a ver com esse prazer.

SABER CONSCIENTE E SABER REPRIMIDO

O intenso interesse do espectador pela ironia dramática pode, porém, ter causa diferente. Em alguns dos exemplos citados, fica evidente que a ignorância da vítima é consciente. O que dizer, entretanto, sobre o nível do inconsciente? Se Nora (Casa de boneca) não se dá conta de ser maltratada pelo marido, talvez seja por, no fundo, isso lhe interessar e ela preferir, por enquanto, não ter de agir a esse respeito. Se Norma Desmond (Gloria Swanson em O crepúsculo dos deuses) ignora o fato de não mais ser uma diva, é provavelmente porque sabê-lo lhe seria doloroso demais. Quanto a Édipo (Édipo rei), certamente reprime verdades muito insuportáveis para ele.

O fenômeno é, sem dúvida, idêntico no mundo concreto. A fronteira entre o que sabemos conscientemente e o que intuímos ou sentimos é, com freqüência, imperceptível. Em alguns dos exemplos citados, a palavra “ignorar” pode ser forte demais. A vítima da ironia dramática, em muitos casos, não ignora, prefere antes ignorar ou se recusa a acreditar – pode, aliás, suspeitar daquilo que nós, espectadores, já sabemos. Talvez por isso, maridos (ou mulheres) traídos, tanto na vida como na ficção, sejam sempre os últimos “a saber”.

Em conseqüência disso, explorar uma ironia dramática consiste, muitas vezes, em colocar em cena toda a energia que o inconsciente humano gasta tentando evitar que o consciente admita algumas verdades por demais cruéis. Assim sendo, a ironia dramática daria conta, com mais precisão e profundidade, da psicologia dos personagens. Ainda aqui, é fácil imaginar o prazer do espectador ao perceber nos outros o que ele vivencia cotidianamente, ainda que sem se dar conta.

Além de O crepúsculo dos deuses, Casa de boneca e Édipo rei, outras três obras ilustram com perfeição essa oposição entre saber consciente e saber reprimido: Morte de um caixeiro- viajante, Mentira / A sombra de uma dúvida e Festa de família. Na peça de Arthur Miller, Willy Loman recusa a verdade porque ela é penosa demais, mas sentimos que ele se aproxima da lucidez, dando até a impressão de tê-la compreendido. É o que faz da peça obra tão rica, profunda e fascinante. No filme dirigido por Hitchcock, sabemos que Charlie (Joseph Cotten) é assassino procurado pela polícia; sua família o ignora. E, no entanto, a sobrinha (Tereza Wright) suspeita de algo e, aos poucos, sua intuição se transforma em certeza. Todo o segundo ato descreve o processo dessa revelação. Finalmente, em Festa de família, pensamos que Christian (Ulrich Thomsen) diz a verdade quando acusa seu pai de abuso sexual. Atenção: nenhuma prova formal nos é oferecida, além da força dramática que nos impulsiona inconscientemente a identificar-nos com o personagem em conflito. Ora, a maioria dos convidados dessa festa de família não acredita em Christian: alguns nada sabem; outros reprimem o que inconscientemente já sabem; outros ainda (o pai e a mãe) mentem. Todos, porém, de uma maneira ou de outra, preferem não encarar a intolerável verdade. Uma das grandes qualidades de Festa de família é a descrição, durante grande parte do segundo ato, da lenta e dolorosa tomada de consciência dos participantes da festa.

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