Os diálogos-pagamentos

(trecho do capítulo 13 de A Dramaturgia)

Aos auto-suficientes diálogos de citações, que dispensam outra função que a de pavonear seu sortilégio, eu prefiro os diálogos-pagamentos, que necessitam do contexto para que todo o seu sentido aflore. E isso talvez nos ajude a definir um bom diálogo. Para convencer-se, basta tomar o diálogo mais célebre do repertório, “Ser ou não ser“, e tentar colocá-lo em diferentes contextos. Dependendo de quem o diga – Hamlet, no começo do célebre monólogo (Hamlet, III/1); um pedestre na rua; ou o ponto no teatro (Adolf Licho) em Ser ou não ser -, fica claro que ele não tem o mesmo alcance.

Outro exemplo, o bife de Shylock em O mercador de Veneza (III/1): “Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? (…) Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos?“. De fato, esse diálogo se basta, dispensando injunções. Seria interessante, no entanto, notar que o contexto de O mercador de Veneza lhe oferece um sentido particular. Não se trata da réplica de um judeu diante de seus algozes – como estaríamos tentados a crer -, mas sim a de um judeu ressentido pela fuga de sua filha, e que tenta justificar seu desejo de revanche em relação a Antonio (“E se nos ofenderdes, não nos devemos vingar?“). Em outros termos, Shylock não está dizendo a Antonio: “Pare de me maltratar, sou humano como você”, mas “Fui por você menosprezado, estou ferido como qualquer outro ser humano, e você vai me pagar caro pelo que fez”. Lubitsch e seus co-roteiristas darão a essa tirada outro sentido mudando seu contexto em Ser ou não ser.

Exemplos de diálogos-pagamentos

Dessa maneira, certos diálogos, de absoluta falta de interesse fora de seu contexto, tornam-se particularmente saborosos quando assistimos ao que lhes precede ou envolve. Eis aqui alguns exemplos.

No final de O mercador de Veneza (V/1), Portia pede a Bassânio, seu marido, o precioso anel que ela lhe dera. Ora, sabemos que Bassânio o ofereceu ao advogado, em agradecimento a sua excepcional ajuda. Sabemos também que o tal advogado era a própria Portia disfarçada, sendo, portanto, ela quem possui o anel. Bassânio se afoga em mentiras para se desculpar. Portia termina por estender-lhe a jóia, dizendo: “Que seja mais zeloso“.

Em La main passe (II/4), Francine é surpreendida por seu marido numa cama que não é a sua. Com seu ar mais ingênuo, ela diz: “Quê?… Quê?… O que você vai imaginar desta vez?“.

Em Eu sou um evadido, James Allen (Paul Muni) é considerado criminoso pela polícia e pela justiça, ainda que seja totalmente inocente. Vítima das piores injustiças, preso várias vezes, acaba foragido. Ele tenta então rever a mulher que ama (Helen Vinson) para lhe dizer adeus. É o final do filme. Ela lhe pergunta como ele consegue sobreviver. “Eu roubo“.

Em Ninotchka, Ninotchka (Greta Garbo), austera comissária soviética, vem a Paris em missão. Ela é recebida por três camaradas (Sig Ruman, Felix Bressart, Alexander Granach), já corrompidos pelo hedonismo capitalista parisiense. Os quatro se encontram na suíte real de um grande hotel e pedem cigarros ao serviço de quarto. Chegam então três vendedoras, jovens e animadas, vestidas como call-girls. Elas se imobilizam ao ver Ninotchka, enquanto os três camaradas abaixam a cabeça, envergonhados. Ninotchka diz: “Camaradas, vocês devem estar fumando muito.

Em O grande ditador, Hynkel (Charles Chaplin) acaba de dançar com a mulher de Napaloni (Grace Hayle), a quem, por delicadeza poderíamos dizer, falta graça. Ela a felicita: “Sua maneira de dançar, Madame, estava magnífica… excelente… muito boa… boa!“.

Em Humulus, o mudo, Humulus pode pronunciar, por dia, uma única palavra, e decide economizá-las durante um mês para poder declarar seu amor a sua eleita. Chega enfim o dia D. Humulus faz sua declaração. A bela exibe então um aparelho auditivo e pede: “Pode repetir, por favor?“.

Ao final de Quanto mais quente melhor, Jerry (Jack Lemmon) deseja realmente que Osgood (Joe Brown), que pensa que ele é uma mulher, pare de fazer-lhe a corte. Ele tenta todos os tipos de argumento, mas em vão. Desesperado, decide então confessar sua identidade sexual. Osgood, nada surpreso, lança então o lendário: “Ninguém é perfeito“.

Ao final de Spartacus (1960), o exército de escravos comandado por Spartacus (Kirk Douglas) é vencido pelos soldados de Crassus (Laurence Olivier). Os sobreviventes são feitos prisioneiros. Lhes é prometido escapar à crucificação se entregarem o corpo, vivo ou morto, de seu líder. Spartacus vai render-se quando Antoninus (Tony Curtis) se levanta e grita: “Sou Spartacus!“. Logo, outro prisioneiro faz a mesma coisa. E um terceiro. Rapidamente, todos os escravos gritam em coro “Sou Spartacus!“.

Em Astérix legionário, Obélix é apresentado a Falbala, por quem está apaixonado. Ele estende a mão e diz: “Wkrstksft“.

Ao final de Perigo na noite, o protagonista (Jon Finch) é surpreendido pelo inspetor Oxford (Alec McCowen) ao lado do cadáver de uma moça recém-estrangulada por uma gravata. Ele é, novamente, pego em situação comprometedora. De repente, os dois homens ouvem um ruído. Rusk (Barry Foster), o verdadeiro assassino, chega com uma mala. “M. Rusk, o senhor está sem gravata“, observa o inspetor. Corta. Créditos de fim.

Em Fuja enquanto e tempo, Milan (Lino Ventura) é um assassino profissional e deve, da janela do seu hotel, executar um homem. O problema é seu vizinho da quarto, Pignon (Jacques Brel), um pobre-diabo que, graças a uma tentativa frustrada de suicídio, ameaça o sucesso de sua missão. O camareiro (Nino Castelnuovo) está prestes a chamar a polícia por causa dele. Milan chama o camareiro e, de forma totalmente glacial – graças sejam dadas ao Lino Ventura -, diz: “O que ele precisa… é de um pouco de calor humano. Deixa comigo“.

No final de Viva papa!, Achile Talon é abraçado “calorosamente” por uma bela nativa. Constrangido pela ousada cena, Fonske declara: “Bem… como a esquerda do céu está a oeste, hoje…“.

No final de Que o diabo seja surdo, Perrin (Pierre Richard) já aprontou várias com o detetive particular Campana (Gérard Depardieu). De repente, ele vê uma serpente aproximar-se da perna de Campana. Diz-lhe para não se mexer, aponta sua arma e atira. A bala atravessa a perna de Campana, que suspira e confessa: “Eu tinha uma vida um tanto sem graça antes de encontrá-lo, Perrin“.

Em o filme Papai Noel é um picareta, Thérèse (Anémone) oferece a Pierre (Thierry Lhermite), como presente de natal, uma espécie de malha de fabricação artesanal. Pierre comenta: “Oh… puxa Thérèse, um pano de chão, que idéia genial!“. No mesmo filme, Pierre critica Félix (Gérard Jugnot) por resolver seus problemas conjugais de maneira brutal. Ele, Pierre, não tem o hábito de se entender a golpes de ferro de passar. Félix responde: “Isso é porque você não é um homem doméstico“. Esse exemplo mostra que um diálogo-pagamento pode ser tanto o pagamento de uma série de diálogos quanto o de uma situação.

No final de Memento, que relata de trás para a frente a aventura de um homem sofrendo de perda de memória imediata, o protagonista (Guy Pearce) diz: “Bem, onde eu estava?“. É a última réplica do filme.

A cena de tradução de A vida é bela citada na página 318 contém vários maravilhosos exemplos de diálogo-pagamento.

Cabe notar que esse tipo de diálogo se assemelha aos dos desenhos humorísticos, em que o diálogo é quase sempre banal. É a defasagem que ele cria com o desenho que dá ao conjunto sua graça. Como, aliás, sempre olhamos o desenho antes de ler o diálogo, podemos considerar este último como um diálogo-pagamento. Sempé é um dos mestres nesse domínio.

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