Caracterização

O príncipe encantado de um casal ‘dois em um’

(fragmentos da edição inédita em Português de A DRAMATURGIA, de Yves Lavandier)

Eis um exemplo de personagem questionável e coroado de sucesso: Jack (Leonardo Di Caprio) em Titanic. Penso que o filme lhe deve parte de seu charme. Jack é o que chamamos um Salvador com S maiúsculo. Senão, vejamos: no espaço de alguns dias, ele salva Rose (Kate Winslet) do suicídio, do enfado, da frigidez, do casamento, da aristocracia e, uma segunda vez, da morte! E, como se não bastasse, faz tudo isso sacrificando sua própria vida. Muito esperto da parte de James Cameron. Ao criar o personagem de um superSalvador, quase tão generoso quanto Jesus Cristo, o roteirista de Titanic nos propõe o príncipe encantado que muitos homens sonhariam ser e que muitas mulheres sonhariam encontrar. O problema é que, na realidade, os príncipes encantados não existem. Titanic propõe uma visão do amor destinada a crianças de até quatro anos: uma mulher jovem sofre e, em vez de ir à luta e encontrar nela mesma seu salvador interior (com s minúsculo), ela topa com o belo Leonardo com seu espírito livre, seu senso de sacrifício e sua filosofia de monge budista de 75 anos. Enfim, as mulheres que sonharam com ‘um Jack para chamar de seu’ ao ver o filme correm o risco, a meu ver, de se frustrar ainda mais.

Além disso, notaremos que Titanic descreve a primeira fase de uma história de amor, a fase da fusão – em que tudo vai bem, o outro só tem qualidades, em que estamos apaixonados, e as emoções são fortes e deliciosas. É uma pena que o cinema, como, aliás, o teatro ou a literatura, não se interesse muito pelas fases seguintes de uma relação sentimental. A quase-totalidade das histórias de amor descrevem o momento que precede ou que sucede imediatamente o encontro amoroso. O prosseguimento da relação, como nos contos de fada, pressupõe que o casal viverá unido e feliz para todo o sempre. Sabemos todos que, na vida, isso não acontece dessa maneira. “A coisa mais reconfortante que podemos mostrar às crianças”, dizia Françoise Dolto, “é uma vida de casal que resista ao tempo”. E se a coisa mais reconfortante que pudéssemos mostrar aos espectadores fosse uma vida de casal resistindo ao tempo?

Podemos encontrar várias explicações para essa tremenda lacuna, por exemplo, o fato de que a parte “lua-de-mel” de uma relação amorosa é a mais rica em emoções e a mais espetacular, bem como o de que muitos autores se projetam no que escrevem e estão mais habituados a se apaixonar do que a viver um romance em sua duração. Entre as exceções, obras que se dedicaram a abordar a vida de casal pós-fase de fusão, podemos citar Viagem à Itália – prova, aliás, de que uma vida de casal que resiste ao tempo não é necessariamente isenta de conflito. Cabe citar ainda Quem tem medo de Virginia Woolf?, Cenas da vida conjugal, Uma mulher sob influência, A chama que não se apaga ou Nós não envelheceremos juntos.

CARACTERIZAÇÕES – ALGUNS EXEMPLOS ANTOLÓGICOS

Se existe domínio em que o gosto pessoal do espectador entra em consideração, esse domínio é bem o da caracterização. Por isso a escolha dos personagens antológicos citados abaixo é impregnada de minhas preferências e subjetividade, e não deve ser considerada definitiva. Caberá a cada leitor ajustar as listas abaixo de acordo com seus paladares.

O que torna um personagem cativante?

Os personagens que salvam o planeta com seus pênis e um canivete me aborrecem profundamente. Prefiro o capitão Haddock a Tintin, Obélix a Astérix, Falstaff ao príncipe Henry (Henrique IV), Cyrano de Bergerac a Christian, Max (Don Adams em Agente 86) a 007 (James Bond). Sem a falta de jeito de Clark Kent, o Super-homem seria insuportável. Idem para o Homem-Aranha sem a timidez de Peter Parker. É na simpatia que sentem por Perrin-Pignon (Jacques Brel, Pierre Richard ou Jacques Villeret) que Milan (Lino Ventura), Campana (Gérard Depardieu) ou Brochant (Thierry Lhermitte) se tornam mais humanos. Metaforicamente, aliás, muitos filmes revelam como um bruto se humaniza à medida que seu lado frágil se libera.

De tanto freqüentar o repertório, noto alguns elementos constantes nos personagens que me tocam. Apóio-me nestes exemplos :

– Antígona, em Antígona,
– Édipo, em Édipo rei,
– Falstaff, em Henrique IV,
– Otelo, em Otelo,
– Lear, em Rei Lear,
– Arnolfe, em Escola de mulheres,
– Nora, em Casa de boneca,
– Cyrano, em Cyrano de Bergerac,
– Carlitos (Charles Chaplin),
– Laurel e Hardy (O gordo e o magro),
– Mãe Coragem, em Mãe Coragem e seus filhos,
– Galileu, em A vida de Galileu,
– George Bailey (James Stewart), em A vida é bela,
– Cody Jarrett (James Cagney), em Fúria sanguinária,
– Will Kane (Gary Cooper), em Matar ou morrer,
– Annie Sullivan, em Milagre de Annie Sullivan,
– C.C. Baxter (Jack Lemmon), em Se o meu apartamento falasse,
– Felix (Tony Randall), em Um estranho casal,
– César (Yves Montand), em César e Rosalie,
– Dersou Ouzala (Maksim Munzuk), em Dersou Ouzala,
– McMurphy (Jack Nicholson), em Um estranho no ninho,
– Franck Poupart (Patrick Dewaere), em Série noire,
– Pupkin (Robert de Niro), em O rei da comédia,
– Charlotte (Charlotte Gainsbourg), em A descarada,
– Ahmad (Babak Ahmadpoor), em Onde é a casa do meu amigo?,
– Alice (Mia Farrow), em Alice,
– Phil Connors (Bill Murray), em Feitiço do tempo,
– Erin Brokovitch (Julia Roberts), em Erin Brockovich,
– Carla (Emmanuelle Devos), em Em meus lábios,

Eis os elementos que constituem o patrimônio comum desses personagens:

1. Eles não são perfeitos, longe disso. Não são super-heróis musculosos e engenhosos. Eles têm alguma falha, incapacidades, complexos – são, de alguma maneira, entravados. Édipo é cego e impetuoso (além de amaldiçoado). Nora é ingênua. Cyrano é feio e covarde no amor. Mãe Coragem, gananciosa. Felix Unger, maníaco. César, ciumento. Charlotte, invejosa. Peter, incompetente. Carlitos, um mendigo. Ahmad é uma criança (em um mundo de adultos), Mulan, uma mulher (na China da Idade Média), Jarrett, Pupkin e McMurphy estão no limite do psicótico, o mesmo valendo para Franck Poupart, belo exemplo de criança de quatro anos em corpo adulto.

2. Eles não são nem brancos, nem pretos. E isso não significa que estejam repletos de contradições em todos os domínios, simultaneamente covardes e corajosos, otimistas e pessimistas, avarentos e generosos. Eles podem ser integrais em cada domínio. Simplesmente, apesar de seus defeitos, eles também têm qualidades. E vice-versa. Antígona, Édipo, Felix, George Bailey e Will Kane são íntegros. Fisicamente, Cyrano é corajoso. César é extremamente sedutor. Mulan é astuciosa. Falstaff adora a vida. Laurel e Hardy têm a candura das crianças.

3. Mais especificamente, eles costumam ter uma qualidade extraordinária, uma pequena competência, qualquer coisa que possa tornar-se útil. Carlitos sabe fazer tudo em um minuto, padre, boxeador, equilibrista. Cyrano escreve poemas maravilhosos. George Bailey tem muitos amigos. Dersou sabe sobreviver em meio aos rigores da tundra. Carla sabe ler os lábios. Laurel e Hardy seriam certamente menos cativantes se não nos divertissem. Outras vezes, não têm grande coisa deles, a não ser a enorme perseverança – o que remete à característica de número 5. Sim, mas que qualidade, a perseverança, seja na vida ou na dramaturgia!

4. Eles vivem conflitos. Um personagem sem problemas em sua vida é enfadonho em sua ficção. Lear foi despojado de seu reino, de sua corte, de suas filhas, de sua razão e finalmente de sua vida. Otelo está cego pelo ciúme. Coragem perde seus filhos. Will Kane foi abandonado por todos. McMurphy engole frustração sobre frustração. Laurel e Hardy, derrota sobre derrota. A vida atropelou Alice. Phil Connors está aprisionado em um mesmo dia sinistro. O conflito pode tomar a forma de culpabilidade. É o que torna George (Montgomery Clift) encantador em Um lugar ao sol em oposição a Chris (Jonathan Rhys Meyers) em Match point. Os dois irão longe para escalar socialmente, mas o segundo não tem mais consciência moral do que um réptil.

5. Eles se viram, não esperam que ninguém os venha salvar, como Rose (Kate Winslet) em Titanic. Eles assumem o volante do destino. São combatentes, cada um a seu modo. Édipo investiga até o fim. Pupkin seqüestra uma vedete (Jerry Lewis) para se tornar ator. Arnolfe faz tudo para separar Agnès e Horácio. Galileu resiste, obstina-se, contorna o obstáculo. Erin Brockovich revira céu e terra contra Goliath. McMurphy inventa um jogo de beisebol imaginário. Carla, a coitada, a secretária saco de pancada, ingênua, medrosa e frustrada sexualmente, se recusa a submeter-se. Chega a dar sinal, em algumas circunstâncias, de uma personalidade forte. Começa por escolher um marginal, Paul (Vincent Cassel), para ajudá-la. Como se, inconscientemente, ela soubesse que um tipo como Paul é bom para chacoalhar sua vida. Quando um de seus colegas de escritório tenta trapaceá-la no trabalho, ela pede que Paul roube um dossiê. E não hesita em pressioná-lo: “Você me deve algo”. Resumindo, Carla, como os demais personagens aqui mencionados, é tudo menos uma heroína de melodrama – e isso apesar de possuir as características próprias.

6. Ocasionalmente, eles fazem o jogo do “Sim, mas…”. Sim, tenho desejo de mudar, de atingir meu objetivo, mas tenho medo. Medo do vazio, do que eu não conheço, medo de largar minhas muletas, de não ser bem-sucedido. Como diz Hamlet em seu famoso monólogo (Hamlet), nós suportamos os males conhecidos, para não buscarmos refúgio em outros males ignorados. Sem chegar ao extremo de Hamlet, que tripudia sobre o tempo de duração, sentimos todos esses personagens, num momento ou noutro, no limite da renúncia. O “Sim, mas…” mais colossal do repertório é o de Édipo. Tirésias lhe oferece a solução, e ele poderia ter atingido seu objetivo desde o começo da peça. Sim, mas Édipo tem medo (justificado) da verdade. Apesar de reencontrar sua florista adorada, Carlitos prefere partir. C.C. Baxter vai-se embebedar em um bar quando toma conhecimento de que a mulher que ama está comprometida. Phil Connors tenta suicidar-se para escapar da repetição interminável de um dia de sua vida.

Esta última característica, no entanto, deve ser manipulada com precaução. Já vimos que o protagonista com o qual nos identificamos quer algo. Quando Cyrano hesita, ao ter conseguido seduzir Roxane (fim do Ato IV), muitos deixam de considerá-lo fascinante.

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